quarta-feira, 31 de março de 2010

A bela oração de Clarice

Meu Deus, me dê a coragem - Clarice Lispector

Meu Deus, me dê a coragem
de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites,
todos vazios de Tua presença.
Me dê a coragem de considerar esse vazio
como uma plenitude.
Faça com que eu seja a Tua amante humilde,
entrelaçada a Ti em êxtase.
Faça com que eu possa falar
com este vazio tremendo
e receber como resposta
o amor materno que nutre e embala.
Faça com que eu tenha a coragem de Te amar,
sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo.
Faça com que a solidão não me destrua.
Faça com que minha solidão me sirva de companhia.
Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar.
Faça com que eu saiba ficar com o nada
e mesmo assim me sentir
como se estivesse plena de tudo.
Receba em teus braços
o meu pecado de pensar.

terça-feira, 30 de março de 2010

Os caminhos da moral contemporânea...

Ressurreição com sabor de chocolate


Jesus está vivo! Superou o desafio da morte e nos deixou a belíssima mensagem de que a vida é repleta de travessias pascais que podemos e devemos passar. Quando maturamente consideramos a mensagem pascal destes dias, concluímos que a vida é uma sequência infinda de mortes e ressurreições cotidianas as quais todos passamos indiferente de credos, cores e raças.
Mas aí, eis que surge outro elemento na celebração pascal da vida: o coelho. Criatura que jamais pôs ovo algum e, para complicar sua missão, deve fazê-los de chocolate. Coloridos, surpreendentes, saborosos e a cada ano mais caros. Uma fantasiosa crença cultivada desde cedo no coração de nossa infãncia para o desespero do bolso de muitos pais. Como frustrar o olhar encantado de uma criança que na manhã de domingo procura o ninho que foi construído na escola, na família ou na solidão de seus sonhos? A Páscoa torna-se festa altamente lucrativa, mas também, seriamente destrutiva para os que estão à margem da sociedade do consumo que estamos inseridos.
Resta aos muitos que não podem participar desta alegria, aguardar  dos que receberam a visita do coelho generosamente, as sobras de seus ninhos e o discurso falido da solidariedade. Talvez seja esta morte, a da dignidade humana, a mais dolorosa e difícil de se experienciar ressurreição.
Jesus está vivo, venceu a morte! O coelho chegou, vence o consumo.

sábado, 27 de março de 2010

Tagore ensina como encontrar Deus

" Deixa de cantar e entoar hinos e debulhar contas!
A quem estás adorando neste canto escuro e solitário de um templo de portas todas fechadas?
Abre teus olhos e vê: teu deus não está na tua frente, ele está ali onde o lavrador está lavrando o solo duro e onde o operário quebra pedras para abrir estradas. Com eles, no sol e na chuva a sua veste coberta de poeira.
Tira teu manto sagrado, e como ele, desce para a terra poerenta! Sai de tuas meditações e larga tuas flores e incenso.
Qual  é o problema de tuas roupas ficarem esfarrapadas e manchadas?
Encontra-O e fica com Ele, na labuta e no suor do teu rosto".

quarta-feira, 24 de março de 2010

Jovens envoltos em frágil blindagem


Estar diante de jovens em nossos dias é como confrontar-se com a Esfinge procurando decifrar seu enigma antes de ser devorado pela mesma. Não há juventude, existem juventudes, cada uma delas com características próprias numa pluralidade cuja essência talvez seja a mesma.
Jovens "adestrados" pelos muros da instituição escola ou família com suas rebeldias limitadas até àqueles que "soltos na vida" agridem e almejam internamente por um limite, todos eles, sem distinções, se revelam frágeis seres que carregam diante de si, uma blindagem para protegerem-se do nosso adultocentrismo que insiste em ousar conduzí-los por caminhos nem sempre por eles almejados.
Não somos "pastores" de um rebanho sem rumo, que segue cegamente a voz de comando de nossa tola sabedoria,  não devemos ser "carcereiros" das grades que a sociedade erguera em torno do mistério juventude. Sejamos neotéfilos, amigos da juventude apenas, companheiros de jornada nesta estrada chamada pós-modernidade a qual, para todos nós, tornou-se incerta, mas, também surpreendente.
Não há palavras para descrever o sentimento de inércia diante de um jovem que afirma não ter expectativa alguma com a vida, de presenciar em suas atitudes destrutivas, o grito silencioso de socorro. Em seu rosto, a juventude se perdendo num envelhecer cotidiano da desesperança. Os olhos expressando a indignação para com uma existência vazia, solitária, ferida...não há pais, educadores, sacerdotes, deus, amigos, futuro...tudo oscila e convida ao adormecer infinito, fuga desesperada das manhãs sem sentido. Drogas.
Diante destes jovens, com toda minha "ilusória bagagem cultural" e boa vida, me sinto nua, pobre, tola e inútil, mas não me deixo vencer pelo desânimo e cansaço que me afligem nestes dias, porque sei, sinto o quanto é preciso "apostar" na vida.
E assim como Pedro e João, diante do aleijado da porta do Templo (AT 3, 1-10) estendo minhas mãos para estes jovens e digo: "Ouro ou prata eu não tenho, mas o que eu tenho, isso te dou..." ansiosa para que, como nesta bela passagem das Escrituras, o jovem possa superar a si mesmo e sair pulando, cantando e agradecendo o simples existir.


Quaresma ainda: desejo de ser pão

Ser cristão, ser religioso, é estar mais próximo dos ensinamentos do Pai e da tentativa de fazer, no dia-a-dia de nossos passos e atitudes, com que eles possam ser vivenciados, experienciados na prática da vivência das relações em grupo, comunidade, vida fraterna.
Um dos maiores ensinamentos do Pai foi o da partilha, doação intensa sem cobrança ou limites. É perceber que não somos um, mais muitos, numa relação de fraternidade, simetria e vida.
Se não sou apenas um, uma, não posso viver como se o fosse no cultivo de um egoísmo inocente, mas que mata a vida em comunhão. Eu sou a fraternidade, tudo é nosso, nada é meu apenas.
O Pai se deu por inteiro e o Filho fez o mesmo até a morte na Cruz, como se não bastasse, o Filho insistiu na importância do doar-se e tornou-se Pão Vivo, Memória e Esperança, é impossível ir para uma Celebração Eucarística, rezar ao Pai e permanecer somente voltado para si mesmo. Fechamento ao Espírito que se desvela nas atitudes cotidianas.
Quaresma é tempo de rever o sentido da doação, do despojamento, do servir aos outros, é tempo de ser Pão, Pão partido, doar-se por inteiro e, via este gesto, ser testemunho da maior mensagem deixada pelo Cristo: o esvaziamento.
Que a quaresma nos conduza a refletirmos o quanto somos capazes de nos tornarmos Pão, doando nossas potencialidades, onde quer que estejamos, estender as mãos, preparar o banquete, ações concretas, não apenas para o nosso existir, mas, para o existir dos outros que me completam.
Sejamos Pão partido, saborear juntos e juntas é muito melhor do que saborear solitariamente, trabalharmos juntos e juntas é menos cansativo do que fazer o que queremos sozinhos. Para isso, há a comunidade, o grupo, a colaboração. O começo acontece com a iniciativa de um que leva ao engajamento do outro.
Quaresma é tempo de intensificar o Ser Pão dentro de cada um, cada uma de nós. É aprofundar o seguimento e conduzir o dom da partilha para uma vida comunitária justa, onde, ninguém fica sobrando, ou, com sobras do que foi deixado.
O que me impede nesta quaresma de ser mais doação e menos retenção? O que posso fazer para me tornar cada dia Pão partido para os que comigo convivem?
Somente assim, saberemos o real sentido e a bela experiência de entender a frase do Pai: “aonde um ou mais estiverem reunidos em Meu Nome, Eu estarei com eles”.

sábado, 20 de março de 2010

domingo, 14 de março de 2010

A necessidade das idéias claras segundo Pierce


O filósofo Charles Sanders Pierce, influenciado pela proposta cartesiana de reconstruir a filosofia e superar o hábito dos escolásticos de verem na autoridade a fonte última da verdade, reforça em sua obra, a necessidade de um método cuja fonte natural dos princípios verdadeiros está na mente humana, na consciência. Para que a consciência pudesse oferecer-nos verdades fundamentais e decidir do que fosse agradável à razão uma condição de verdade foi assinalada por Descartes: serem claras as idéias. Mas, como tornar clara as nossas idéias? Como distinguir entre uma idéia clara ou obscura?
Para Pierce uma idéia clara é definida como "aquela apreendida de forma tal que se torna possível reconhecê-la em qualquer situação sem confundí-la com qualquer outra dita obscura". Uma clareza de pensamento é sumamente emergente em nossos dias, clareza já notada e admirada na filosofia. Pierce ainda acrescenta "não se escreveu ainda a página da História que nos diria se tal povo, a longo termo, prevalecerá ou não sobre povo cujas idéias (tal como palavras de sua língua) sejam poucas, mas que possua domínio completo sobre essas poucas idéias. No que tange ao indivíduo, não pode haver dúvida de que umas poucas idéias claras valem mais do que muitas idéias confusas".(PIERCE,1975)Conhecer o que  pensamos, dominar nossas próprias tensões daria sólido alicerce a uma pensamento lúcido, ponderado e edificante numa não tardia maturidade intelectual, já que esta costuma chegar tarde numa infeliz acomodação da natureza, pois para o ser humano que já realizara parte de seu trajeto existencial e os erros já produziram seus respectivos efeitos a clareza é de menor utilidade, do que para aquele, aquela, que tivesse o caminho à sua frente. Infelizmente, lastima o pensador, esta lição é acolhida apenas pelos tímidos e de idéias pobres, muito mais felizes que os que desamparadamente chafurdam no rico lodo das concepções. Que terrível constatação a de ver que uma única idéia obscura, furtivamente instalada no espírito do indivíduo, pode, por vezes, agir como obstáculo de matéria inerte numa artéria, impedindo a nutrição do cérebro e condenar sua vítima a consumir-se no total domínio de seu vigor intelectual. Vigor como de indivíduos que ao longo dos anos, acariciam vagas sombras de idéias, idéias sem sentido, falsas, e amaram as mesmas apaixonadamente, fazendo delas companheiras de todas as horas chegando a consagrar suas forças e vida... Entretanto, muitos despertaram em certa manhã gloriosa e verificaram que elas se tinham ido, muitos infelizmente, ao perceberem tal ausência, deixaram também que desaparecesse a essência de suas próprias vidas. Chegada era a aurora da dúvida e do desvelar das crenças.

sábado, 13 de março de 2010

Amizade, livros e café

Se existe algo capaz de aniquilar com a irritante monotonia de uma sexta-feira solitária é a combinação deliciosa da amizade, café e livros...
Nada programado, uma simples ligação, confirmar... Encontrar alguém querido, caminhar pela cidade, ouvir novidades cotidianas, silenciar, entrar em uma livraria, sebo, e, aspirar juntos o cheiro de um saber adormecido que transcende na poeira do recinto. Livros. Sarcófago repleto de riquezas pouco valorizadas.
Tocar nos livros, ler orelhas sem pressa, partilhar autores/autoras significantes, rir inocentemente de outros nada significantes. Amizade.
Chega o entardecer e a alma saciada das palavras pede algo mais, um encerramento apropriado para o dia que termina, um café, daqueles que ao fecharmos os olhos poderemos até sentir o aroma. Não um cafézinho apenas, mas um café em boa companhia, um café que aquece o coração e impulsiona ao novo dia. Café.
Amizade, livros e café, poderá haver combinações melhores, mas esta, faz toda a diferença em algumas sextas-feiras.


quinta-feira, 11 de março de 2010

Quaresma: tempo de limpar a casa


Sempre apreciei a metáfora de que "quaresma é tempo de arrumar a casa"...
Mesmo que a origem deste tempo litúrgico, na tradição cristã, nos revele a seriedade de um deserto reflexivo e repleto de desafios espírito-existenciais que Jesus de Nazaré passou por um período de 40 dias, é preciso que saibamos também,  atualizar a mensagem para compreendê-la melhor em nossos dias.
Numa sociedade em que estamos a mercê dos "entulhos" do consumismo alienante, do individualismo social e da ignorância religiosa, é sumamente emergente um tempo de "limpeza" radical. Não para ficarmos "purificados" melhores que os que conosco partilham deste universo, nada disso, mas, para que nos tornemos mais humanos e possamos então compreender os desafios de nossos tempos.
Quaresma é período de reflexão dos passos dados e da trajetória que há para percorrer, é silenciar em meio a turbulência dos dias e aprofundar o sentido de nossas vidas em um tempo do sem sentido.
Afastar os móveis, abrir portas e janelas, tirar a tapeçaria para fora, espanar a poeira dos dias, especialmente, daqueles em que deixei de ser humanamente feliz e permitir aos que comigo "residem" serem felizes. Dar passagem ao vento que renova o ar das paredes, nem sempre ventiladas de nossa mente. Limpar tudo que for possível, permitido, numa abertura de coração, dispisponibilidade às mudanças necessárias.
E, ao final deste tempo, poderemos enfim, mesmo que exaustos, comemorar, chamar os nossos para uma Páscoa de partilha, passagem para tempos melhores, e, ouvir então no mais íntimo de nosso coração, o sussurro da confirmação dos que amamos  dizendo: "Eu desejei passar esta ceia com você".